terça-feira, 30 de junho de 2015

UM ALÉM DA CONSCIÊNCIA


Um além da consciência?

                                                           David Dubois

Existe um além da consciência?
Algumas autoridades afirmaram que sim, como Nisargadatta Maharaj, e outros antes dele. Como a escola da Nyaya / Vaisesika, para quem o estado de liberado é um estado de inconsciência, porque a consciência não é a nossa verdadeira natureza, mas apenas uma qualidade, um atributo entre outros, do qual somos liberados no momento da liberação. Este estado de liberação não é um estado de felicidade, de plenitude, mas uma ausência de todo o sofrimento e toda experiência, um estado que não é verdadeiramente um estado. Além disso, a consciência é o fundamento de toda experiência, por isso tanto sofrimento. Libertar-se da consciência é, portanto, libertar-se do sofrimento. Este é um tema das filosofias do Ocidente, que de diferentes maneiras certamente celebram a supra-consciência ou a inconsciência, desde o desconhecimento do teólogo Denys até as noites alcoolizadas  de nossa juventude.
Portanto, o absoluto é outra coisa que a consciência? A consciência é um estado susceptível de ser ultrapassado? E o que é a consciência?
Para alguns, como para o budista Nāgārjuna, toda consciência implica uma dualidade de sujeito e do objeto. No Ocidente, dizemos que toda consciência é consciência de alguma coisa. A corrente budista testemunhada por Nāgārjuna compara a consciência com uma espada que não pode cortar-se a si mesma. Em outras palavras, não há consciência de si. É apenas uma aparência, um pretexto, um mito, uma maneira de falar sem refletir.
Mas o que seria uma consciência sem consciência de si, uma consciência inconsciente, de alguma forma?
Outra corrente budista, ao contrario afirma que a consciência é consciência de si mesma, sem dualidade entre sujeito e objeto, como uma lâmpada é para si a sua própria luz, sem a necessidade de outra lâmpada. Esta corrente, presente às origens do Grande Veículo (Mahayana), vai se tornar a escola de prática do yoga (Yogacara), segundo a qual tudo é construção mental.


Em resumo, no Ocidente como no Oriente, no hinduísmo como no budismo, e ainda hoje, há duas posições sobre a consciência:
- consciência é um estado, uma etapa em direção ao absoluto que é a nossa verdadeira natureza, um estado sutil, o estado ultimo, mas que pode e deve ser ultrapassado em um inconcebível além da consciência, pois toda consciência é germe de sofrimento e todo sofrimento envolve uma certa dualidade. Não se pode escapar da experiência do sofrimento, a não ser para além da própria experiência, isto é, a consciência.
- a consciência não é um estado, mas o pano de fundo de todo estado. Ela não é uma etapa, mas o fundo sem fundo de todas as etapas. Não é uma qualidade do absoluto, mas sua essência. Toda consciência é autoconsciência, mas esta consciência de si não implica dualidade entre sujeito e objeto. Consciência se conhece a si mesma, mas não da maneira que conhecemos um objeto. Ela se conhece imediatamente. A consciência não é necessariamente uma fonte de sofrimento: a pura consciência de si, sem auto-objetificação, sem identificação, tem o poder de transformar toda a experiência em felicidade impregnada de paz.
Penso que a razão, a intuição e a experiência mostram que a segunda posição é o caminho certo.
A primeira posição é errada porque:
- ela confunde a consciência com um estado, ou seja, com um objeto de consciência.
- quando ela afirma que a consciência é necessariamente dualista, como a espada não pode cortar-se, ainda confunde a consciência com um objeto. Consciência não se parece com uma espada ou qualquer outra coisa. Só Deus pode conhecer a Deus.
- um além da consciência ainda seria uma experiência, por isso, um estado de consciência. Querendo sair da consciência, ou acreditar que se saia, é como tentar ir mais rápido que a própria sombra.
- a consciência não é dual, mesmo quando ela parece ser. A consciência do objeto é sempre, na realidade, uma autoconsciência. A dualidade é um erro: toma-se uma consciência de si por uma consciência do outro, como num sonho.


- não há meios de conhecer além da consciência.
- os textos tradicionais que afirmam que o absoluto esta "além da consciência ou da inconsciência", "sem consciência" (acetana, asaṃvedana), "além do ser" (sattva-atita) são métodos pedagógicos para liberar a consciência da tendência a se identificar, com os objetos e estados. A sabedoria de Nagarjuna deve ser compreendida neste contexto.
- os estados de vazio, de "inconsciência", onde o sono profundo é a ilustração mais pura, são estados. A consciência não é um deles.
- a consciência não é algo fixo e absolutamente imutável. Ela está sempre presente, mas é livre para se reassumir como vazio, como nada, como é livre de se reassumir como cenoura, cão ou homem.
- a consciência é livre, significa que não é um prisioneira de si mesma: ela pode levar para isto ou aquilo.
- o vazio, os estado de ignorância, de inconsciência, etc. são simplesmente a consciência se retomando como pura consciência, o que a consciência qualifica de inconsciência, porque ela só se conhece comumente (no estado de vigília) nos objetos. O que se toma pela inconsciência ou um "além da consciência" é a pura consciência não dual.
- esta pura consciência não é o reconhecimento liberador. Porque quando os objetos reaparecem, a consciência é arrebatada e alienada novamente.
- a consciência se reconhece como o intervalo entre os objetos, os estados, e como esses objetos, esses estados: somente então ela é livre.
- falando praticamente, permanecemos em silêncio, desprendido, flutuante, desligado, na ausência ou na presença do objeto, sem referência a um sujeito. Ver que não há sujeito, é ver o verdadeiro sujeito. Ver que ninguém vê, é ver nossa verdadeira natureza, a consciência, para além das palavras, das imagens, das emoções, das sensações, dos estados.


Alguns versos do Yoga Vasistha sobre a identidade do absoluto e a consciência de si: 
O vento e o farfalhar são um,
Como o fogo e seu calor.
Da mesma forma, a consciência pura e seu poder de vibrar
São sempre um e o mesmo Ser (6/2, 84, 3)
Quando (a consciência) se distende e permanece como está,
É chamada de "Shiva"
Em seguida, a atividade da deusa, o poder da consciência,
Repousa no Si, em si mesmo.
Quando ela permanece como é, no seu estado natural,
É chamada "Shiva". (02/06, 84, 26, 27-A)
Porque ele está consciente,
(O Absoluto) não pode ser o que é
Se não for assim (consciente),
Como o ouro não pode existir
Sem forma. (6/2, 82, 6)
Você que é sábio! Diga-me como
A pimenta pode existir sem ser pimenta?
Como o açúcar não poderia ser doce? (6/2, 82, 8-9)
Uma consciência pura
Desprovida de consciência
Não merece o nome de "pura consciência"! (6/2, 82, 10)
A consciência não pode estar presente
Sem este tipo de vibração
Que é a substancia mesma da consciência,
Assim como uma coisa não pode ser
O que ela é em não sendo! (02/06, 83, 14)


Assim, não existe além da consciência. E, além disso, mesmo que se pudesse imaginar, falar sobre isso ou experimentá-la, mesmo através de uma "não experiência", ainda estaria na consciência, em que o poeta Jacques Goorma chamou Permanência :
"A Permanência do despertar esta na clareza do espírito, nesta luz que irradia em toda coisa por sua presença. Toda coisa só tem lugar em sua Permanência" (The Living, p. 9)
Na verdade, as coisas não vêm do nada, nem da consciência. Eles são um nada consciente.


segunda-feira, 8 de junho de 2015

O Mistério do Desejo

 David Dubois

Escritor de origem francesa, mestre em filosofia comparada, especialmente o Tantra não dualista da Cachemira. Publicou diversas traduções diretamente do sanskrito, como L'Essence du Yoga selon Vasishta e Le Tantra de la Reconnaissance de Soi e de sua autoria Abhinavagupta ou la liberté de la conscience.


É o desejo ruim?

As tradições espirituais parecem unânimes: o desejo é a causa de todo o nosso sofrimento; e a erradicação do desejo, ou pelo menos a sua reorientação para o divino, é a condição sine qua non da felicidade nesta vida.
Neste julgamento negativo acrescenta-se a ideia de que o corpo é a fonte de desejo. É nele que encontra-se este poder misterioso, feminino e (portanto) difícil de domar.
Mas é realmente assim?
Vamos ler esta passagem de Abhinavagupta, um mestre do Tantra do ano 1000. Antes da citação que se segue, ele explicou que todo prazer vem da consciência universal. E acrescenta:
"Até mesmo uma forma pode ser uma fonte de prazer para os olhos, se ela une-se ao grande êxtase que é nada mais do que a excitação/emoção da energia seminal (presente no corpo sob a forma de sangue e sêmen). E é o mesmo para os ouvidos quando escutam uma música doce. Os outros sentidos, igualmente, desfrutando (do prazer) em seus respectivos objetos,  apreciam o êxtase criativo em sua plenitude, não por uma simples excitação confinadas a eles mesmos ".
Os olhos, os ouvidos e os outros sentidos, com efeito, são apenas objetos materiais, privados de consciência própria e incapazes de experimentar qualquer excitação. Se houver excitação, não vem dos objetos, nem dos sentidos. A excitação é o eco da lembrança de uma plenitude absoluta que transcende os limites físicos e é, portanto, susceptível de nos arrebatar desses limites. Mas, prosseguimos:


"É por isso que mesmo as formas de um belo corpo de uma mulher com rosto adorável, em que os quadris balançam e cujo canto é requintado, não geram uma felicidade plena naqueles que são como pedras, naqueles cuja energia seminal não está madura, naqueles em que a felicidade da paixão - que é apenas a excitação desta energia seminal - está faltando."
O maravilhamento do deleite surge na medida onde (energia seminal) amadurece. Porque, se (esta energia) está totalmente ausente, (observa-se) que há como uma inércia, uma vez que não há nenhum maravilhamento ou deleite. E diz-se (em tratados de estética) que ser dotado de coração, é ser possuído por uma aumento de maravilhamento e deleite, que é (justamente) uma excitação da energia seminal.
Abhinava, Parâtrîshikâvivarana, p. 202
A energia seminal, é o esperma ou o seu equivalente feminino, o sangue. Subjetivamente, esta energia é o desejo.
O que faz Abhinava?
Ele diz que, sem desejo, nada é desejável.
Ou seja, ele inverte a visão clássica, como Spinoza no Ocidente:
Não é a coisa que suscita o desejo,
mas o desejo que faz a coisa desejável.
Cada um pode fazer a experiência: quando se está com muita fome, restos de um biscoito podem nos fazer salivar. De modo que quando se está saciado, o cheiro de um frango assado nos é indiferente. Ou, como o corpo que nos excita antes do amor, mas nos deixa frio depois.


No entanto, este corpo não mudou! Mas o que mudou então? O desejo! Ele é a fonte de excitação, e não o corpo ou aquele objeto. É por isso que o desejo, uma vez satisfeito, isto é, uma vez que desapareceu, não pode nos fazer felizes.
Pode-se tirar duas lições:
- O desejo não se originou no corpo ou em qualquer objeto. Então onde? Na Fonte Divina e Universal, como revelou a experiência do primeiro instante do desejo: percebemos que tudo que desejamos, que desejamos no passado ou que desejaremos, é uno com nossa essência.
- O Desejo é um bem precioso. Em outras palavras, o desejo é desejável. Sem ele, não existe mais prazer, mais excitação, mais vida, mais Consciência. "Infeliz aquele que não tem nada a desejar!" disse Rousseau. Por quê? Porque o desejo é a essência da Consciência, que é em si a essência de tudo. O desejo é o Coração do coração, A alma da alma.


Mas então porque o desejo é a causa do sofrimento?
Na realidade, não é ele quem nos faz sofrer, mas unicamente a crença de que o objeto desejado é separado do desejo. De que estamos separados do que desejamos. No entanto, a experiência do primeiro instante do desejo, sem separação entre o sujeito e o objeto do desejo, é suficiente para sentirmos a unidade, e assim a plenitude. Este não é o sofrimento da separação. Nem o tédio que muitas vezes acompanha a satisfação.