David Dubois
Escritor de origem francesa, mestre em filosofia comparada, especialmente o Tantra não dualista da Cachemira. Publicou diversas traduções diretamente do sanskrito, como L'Essence du Yoga selon Vasishta e Le Tantra de la Reconnaissance de Soi e de sua autoria Abhinavagupta ou la liberté de la conscience.
As tradições espirituais parecem unânimes: o desejo é a causa de todo o nosso sofrimento; e a erradicação do desejo, ou pelo menos a sua reorientação para o divino, é a condição sine qua non da felicidade nesta vida.
Neste julgamento negativo acrescenta-se a ideia de que o corpo é a fonte de desejo. É nele que encontra-se este poder misterioso, feminino e (portanto) difícil de domar.
Mas é realmente assim?
Vamos ler esta passagem de Abhinavagupta, um mestre do Tantra do ano 1000. Antes da citação que se segue, ele explicou que todo prazer vem da consciência universal. E acrescenta:
"Até mesmo uma forma pode ser uma fonte de prazer para os olhos, se ela une-se ao grande êxtase que é nada mais do que a excitação/emoção da energia seminal (presente no corpo sob a forma de sangue e sêmen). E é o mesmo para os ouvidos quando escutam uma música doce. Os outros sentidos, igualmente, desfrutando (do prazer) em seus respectivos objetos, apreciam o êxtase criativo em sua plenitude, não por uma simples excitação confinadas a eles mesmos ".
Os olhos, os ouvidos e os outros sentidos, com efeito, são apenas objetos materiais, privados de consciência própria e incapazes de experimentar qualquer excitação. Se houver excitação, não vem dos objetos, nem dos sentidos. A excitação é o eco da lembrança de uma plenitude absoluta que transcende os limites físicos e é, portanto, susceptível de nos arrebatar desses limites. Mas, prosseguimos:
"É por isso que mesmo as formas de um belo corpo de uma mulher com rosto adorável, em que os quadris balançam e cujo canto é requintado, não geram uma felicidade plena naqueles que são como pedras, naqueles cuja energia seminal não está madura, naqueles em que a felicidade da paixão - que é apenas a excitação desta energia seminal - está faltando."
O maravilhamento do deleite surge na medida onde (energia seminal) amadurece. Porque, se (esta energia) está totalmente ausente, (observa-se) que há como uma inércia, uma vez que não há nenhum maravilhamento ou deleite. E diz-se (em tratados de estética) que ser dotado de coração, é ser possuído por uma aumento de maravilhamento e deleite, que é (justamente) uma excitação da energia seminal.
Abhinava, Parâtrîshikâvivarana, p. 202
A energia seminal, é o esperma ou o seu equivalente feminino, o sangue. Subjetivamente, esta energia é o desejo.
O que faz Abhinava?
Ele diz que, sem desejo, nada é desejável.
Ou seja, ele inverte a visão clássica, como Spinoza no Ocidente:
Não é a coisa que suscita o desejo,
mas o desejo que faz a coisa desejável.
Cada um pode fazer a experiência: quando se está com muita fome, restos de um biscoito podem nos fazer salivar. De modo que quando se está saciado, o cheiro de um frango assado nos é indiferente. Ou, como o corpo que nos excita antes do amor, mas nos deixa frio depois.
No entanto, este corpo não mudou! Mas o que mudou então? O desejo! Ele é a fonte de excitação, e não o corpo ou aquele objeto. É por isso que o desejo, uma vez satisfeito, isto é, uma vez que desapareceu, não pode nos fazer felizes.
Pode-se tirar duas lições:
- O desejo não se originou no corpo ou em qualquer objeto. Então onde? Na Fonte Divina e Universal, como revelou a experiência do primeiro instante do desejo: percebemos que tudo que desejamos, que desejamos no passado ou que desejaremos, é uno com nossa essência.
- O Desejo é um bem precioso. Em outras palavras, o desejo é desejável. Sem ele, não existe mais prazer, mais excitação, mais vida, mais Consciência. "Infeliz aquele que não tem nada a desejar!" disse Rousseau. Por quê? Porque o desejo é a essência da Consciência, que é em si a essência de tudo. O desejo é o Coração do coração, A alma da alma.
Mas então porque o desejo é a causa do sofrimento?
Na realidade, não é ele quem nos faz sofrer, mas unicamente a crença de que o objeto desejado é separado do desejo. De que estamos separados do que desejamos. No entanto, a experiência do primeiro instante do desejo, sem separação entre o sujeito e o objeto do desejo, é suficiente para sentirmos a unidade, e assim a plenitude. Este não é o sofrimento da separação. Nem o tédio que muitas vezes acompanha a satisfação.
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